terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Crítica: Ela

O início e o fim do amor

Por Pedro Strazza

O amor é um dos sentimentos mais interessantes no ser humano. A partir do momento em que nascemos, começamos a nos apegar a qualquer coisa - como uma coberta de um berço ou o toque maternal - em busca, talvez, de algum terreno seguro para podermos nos desenvolver com auto-segurança. O tempo passa, nós crescemos e essa sensação se amplifica, indo dos objetos mais simples aos mais complexos, e o ápice de tudo isso ocorre no momento em que nos apaixonamos pelo outro. Afinal, que outro tipo de relação pode ser mais confusa, atordoante e bela que a desempenhada por duas pessoas? Melhor, existe algo mais poderoso que um relacionamento entre dois homo sapiens (independente do gênero dos dois)?
Para Spike Jonze, essa resposta é relativa, e sua explicação está personificada na figura do anti-social e solitário Theodore (Joaquin Phoenix) em Ela, seu mais novo trabalho. Recém-separado e recém-traumatizado de seu casamento com Catherine (Rooney Mara), o escritor de uma empresa que faz cartas amorosas manuscritas digitalmente resolve instalar em seu computador um inovador sistema operacional que, dotado de personalidade, aprende e evolue conforme conversa com seu usuário. Depois de algumas perguntas, o programa cria para Theodore a curiosa e extrovertida Samantha (Scarlett Johansson), com o qual ele começa a interagir e, pouco tempo depois, se apaixonar.
Esse estranho e complicado relacionamento protagonizado por homem e máquina rapidamente é desenvolvido pelo diretor de forma brilhante. Correndo sérios riscos de levar a trama para um lado mais clichê e, com certeza, mais bobinho e infantil, Jonze resolve criar em Ela três camadas de entendimento na história de Theodore e Samantha, e em momento algum do longa rebaixa qualquer uma destas. Apesar de difícil, esta estratégia logo se prova recompensadora, pois deixa o filme muito mais acessível - pois pode-se analisá-lo de três formas diferentes - e torna a experiência cinematográfica deveras mais profunda.
Dentre essas camadas, a mais perceptível é, obviamente, a evolução do romance entre Samantha e Theodore, cuja veracidade é questionada a todo momento pelos amigos do escritor e, principalmente, pelo próprio casal. Afinal, o amor entre os dois ali é algo real ou apenas ditado por linhas de programação e uma loucura do próprio usuário? Como essa paixão se desenvolve, se não há nenhuma conexão carnal entre os dois? Essa última chega a incomodar tanto o sistema operacional vivida por Johansson - cuja voz marca forte presença no filme, mesmo não aparecendo em nenhum momento - que ela chega a contratar uma atriz para "vivê-la" para o marido, protagonizado uma das (senão a) cenas mais engraçadas, interessantes e importantes do longa.
Mas paralelamente a esse processo, outra história também vai se desenrolando (ou melhor, se encerrando) na vida de Theodore: a superação pessoal de seu duradouro relacionamento anterior com Catherine. Não são poucos os momentos em que o escritor precisa encarar no filme o seu passado com a ex-esposa, mostrado em flashbacks silenciosos e rápidos, para oficializar o divórcio. Mas mesmo quando ambos se encontram fisicamente e assinam os papéis - em outro momento que também merece a atenção total do espectador -, a ideia de que o amor ali acabou não é verdadeiramente aceito por Theodore, mesmo ele afirmando a todo momento de sua consciência desse fim com a justificativa de ter seguido em frente com Samantha.
Para funcionar de fato, essa "dualidade" amorosa vivida por Theodore precisa de uma atuação no mínimo boa, e a escalação de Phoenix para o papel não poderia ter sido melhor. Usando de um bigode e óculos parecidos com uma máscara de criança, o ator personifica a figura inicialmente solitária e melancólica de seu personagem, mas ainda mantém os traços leves exigidos pelo perfil da produção. E apesar de contracenar sozinho fisicamente na grande maioria das cenas, ele não é o único a fazer bom trabalho: O elenco de apoio, principalmente Amy Adams e Rooney Mara, trabalha muito bem nos poucos momentos que são exigidos.
Ela, entretanto, não é apenas um filme intimista. Passado em um futuro não determinado, Jonze retrata uma sociedade que vive se relacionando (e se isolando) com a tecnologia e apenas ela, concretizando assim o conceito da multidão solitária proposto há muito tempo pela sociologia. Até as cartas amorosas, dotadas de um razoável nível de pessoalidade, são escritas por outras pessoas, que chegam a conhecer melhor(!) o casal, seus costumes e gostos pessoais que os próprios. E quando vemos algum tipo de interação social que não entre os personagens - como quando um desesperado Theodore cai na rua e é socorrido por alguns transeuntes quaisquer -, torna-se estranho para o espectador esse maior nível de contato humano. E o pior de tudo não é perceber que essa sociedade não está tão longe da nossa, mas sim que talvez já estejamos vivendo essa cultura da solidão.
Aliando esse lado mais social com um outro mais emocional, Ela é uma experiência poderosíssima e igualmente satisfatória. O direcionamento dado por Jonze, a competência de seu protagonista e a análise realizada neste dão ao filme a característica necessária para atingir o público. E não se engane: Apesar de estar disfarçado de uma comédia romântica, há muito mais a ser visto ali.

Nota: 10/10

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