terça-feira, 21 de outubro de 2014

Crítica: Acima das Nuvens

Olivier Assayas aborda o tempo e suas complicações através de mulheres protagonistas e profundas

Por Pedro Strazza

A vida às vezes pode ser brutal, e Maria Enders (Juliette Binoche) está experimentando isso. Atriz de renome e bastante assediada por diversas produções, ela está no meio do processo de seu divórcio quando recebe a notícia de que seu mentor e grande amigo Wilhem Melchior faleceu de forma súbita, justamente às vésperas de uma homenagem à sua carreira que Enders iria aceitar em seu nome. Desnorteada com a cadeia de eventos, Maria no mesmo dia se engraça com um antigo amor, ao qual fornece o número de seu quarto para ele fazer uma visita de segundas intenções a ela - que, pouco depois descobrimos, nunca acontecerá.
Este momento duro que a protagonista de Acima das Nuvens vive é apenas o começo dos problemas a serem enfrentados por ela aqui. Após participar da cerimônia em homenagem a ele e emocionalmente afetada com o ocorrido, Enders acaba aceitando voltar à peça de Melchior que a colocou no estrelato na juventude, agora em um papel bastante diferente. O texto, sobre um relacionamento lésbico entre uma jovem e uma mulher mais adulta, pede agora dela não o primeiro personagem, mas sim o último, do qual Maria nutre um asco irracional. Mas como ela precisa trabalhar sob este, Enders se refugia com sua assistente Valentine (Kristen Stewart) na casa de Wilhem nos Alpes para praticar e entrar na pessoa ao qual irá interpretar.
Estruturando o filme como uma peça de teatro - São 3 atos, incluindo aí o epílogo, e eles ocorrem em diferentes momentos temporais -, o diretor e roteirista Olivier Assayas começa à partir dessa premissa a analisar Maria e sua relação com o envelhecimento, uma questão que de início parece ser ignorada por ela com todas as forças. Seja nas conversas que tem com a assistente ou nas passagens que interpreta, a atriz denota em muitos momentos uma recusa a aceitar a passagem do tempo e suas consequências, mas não porque queira ficar para sempre jovem. Para ela, a velhice significa a perda progressiva de sua figura respeitável que construiu ao longo dos anos para as novas gerações, muito mais atraentes para a mídia com seus escândalos e casos amorosos - algo bastante esclarecido na participação decisiva da personagem de Chlöe Grace Moretz na última parte da obra.
A relação entre o velho e o novo é ainda mais reforçada pela convivência de Enders com Valentine. Confundindo suas personalidades com os papéis principais da peça de Melchior em muitos momentos, atriz e assistente (muito bem interpretadas por Binoche e Stewart) protagonizam discussões interessantes e bem humoradas acerca do assunto, que ganha simbolismos e pontas incisivas de ironia na própria narrativa do filme - as críticas e piadas de cunho metalinguístico com a indústria cultural atual, por exemplo. O grande acerto de Assayas neste quesito, porém, é o de deixar suavemente implícito no longa o passado amoroso entre as duas mulheres sem precisar demonstrar isto de forma evidente, tornando o relacionamento ali mais profundo e intrigante para o espectador.
Prejudicado um pouco pela montagem em alguns momentos artificial, Acima das Nuvens traz questionamentos problemáticos sobre o tempo e seus efeitos a partir da análise bem trabalhada de sua protagonista, que tenta inutilmente desacelerar o próprio envelhecimento e o consequente "esquecimento". Negligenciar o futuro por causa do passado é uma tarefa impossível, e esta lição Maria Enders irá aprender a duras penas.

Nota: 8/10

Crítica parte da cobertura da 38° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2014)

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