domingo, 19 de outubro de 2014

Crítica: Boa Sorte

Carolina Jabor faz estréia eficiente e sensível na ficção cinematográfica

Por Pedro Strazza

A reabilitação é um processo duro para o ser humano. Admitir o erro e tentar repará-lo, afinal, torna-se uma tarefa difícil para um animal cujo orgulho, por menos que seja, está sempre presente, e voltar atrás para reaprender tudo de novo é morte a este pilar. Mas há momentos em que esse processo simplesmente não pode ser postergado.
João (João Pedro Zappa) está nessa encruzilhada. Viciado em um determinado remédio, o garoto acaba sendo internado pelos pais em uma clínica de tratamento após sofrer uma overdose, e passa a viver sobre uma rígida e aborrecida rotina de remédios e descaso. Isto, pelo menos, até conhecer Judite (Deborah Secco), uma mulher viciada em drogas e HIV positiva com a qual inicia uma forte amizade.
Boa Sorte, estréia de Carolina Jabor no cinema de ficção, parte desse improvável relacionamento para tocar em diversos temas enquanto desenvolve seus dois protagonistas. Abandonados pelos parentes e tratados como não importantes pelos funcionários da clínica, João e Judite vivem sozinhos em um mundo onde a individualidade é lei e o conjunto é desprezado, e como suas personalidades são frágeis eles não demoram a serem quebrados pelo sistema. Quando se conhecem, entretanto, ambos encontram um no outro uma espécie de porto seguro, um alguém que possa compreender seus medos e anseios, e podem assim começar a compartilhar com um outro aquilo que aprenderam até ali.
É a partir desse canal de comunicação que o filme ganha corpo e profundidade. Os diálogos protagonizados pela dupla "de loucos" traz conceitos tristes sobre a sociedade atual, como a invisibilidade dos dois para o resto do mundo. Estas passagens, porém, não tornam o longa depressivo por causa do trabalho de Jabor, que consegue tirar uma beleza sincera através de planos delicados e bem construídos - como em um plano-sequência em que focaliza seus dois protagonistas e Felipe (Pablo Sanábio) dançando pelos corredores do estabelecimento onde (sobre)vivem.
Sob este olhar, o roteiro de Jorge e Pedro Furtado é eficiente em elaborar personagens sensíveis e profundos em suas dores, e o trabalho do elenco é fundamental para tornar reais seus papéis. Se Zappa consegue envolver o espectador com seu João por meio da inocência e juventude deste, Secco entrega com o corpo cadavérico e as grandes olheiras uma Judite destruída por suas escolhas e próxima da morte, mas em sua atuação a dota de uma vivacidade e alegria sincera.
O filme não esconde, porém, as falhas e problemas que permeiam sua simples estrutura narrativa. A dualidade entre fantasia e realidade, por exemplo, é muito mal trabalhada pelo roteiro, que não consegue se firmar direito em um dos dois para justificar alguns dos acontecimentos da história, enquanto o personagem de Sanábio é superficializado e claramente pontual, assim como os de Fernanda Montenegro e Cássia Kiss, meros coadjuvantes de luxo na produção.
É por causa de defeitos tão incisivos e de um final que escorrega feio no melodrama que Boa Sorte acaba prejudicando em alguns pontos sua bela e triste história de amor. O talento da produção, liderado por uma diretora promissora, minimiza porém os erros dispostos com uma sensibilidade notável e suave, capaz de embelezar até o ponto mais escuro da breve vida de um casal de jovens.

Nota: 6/10

Crítica parte da cobertura da 38° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2014)

0 comentários :

Postar um comentário