sábado, 4 de outubro de 2014

Crítica: Garota Exemplar

Filme joga o jogo de superfícies com a ajuda decisiva de seus próprios aspectos técnicos e de um elenco eficiente

Por Pedro Strazza

Como diretor, David Fincher é um excelente analista do ser humano. Desde seus primeiros trabalhos, o cineasta estadunidense busca nos roteiros escolhidos a figura do protagonista problemático e imperfeito, que, consciente de sua condição, tenta solucionar racionalmente os problemas que cercam sua vida em uma sociedade defeituosa e em muitos casos decadente. Quando conseguem, porém, os "heróis" das histórias dos filmes de Fincher são de alguma forma afetados pelos acontecimentos que foram obrigados a passar sobre no curso dos eventos, e os desdobramentos destes irão inevitavelmente alterar suas personalidades de forma definitiva e desoladora.
É nesta falta de esperança, portanto, que o diretor atua cerebralmente, e os altos e "baixos" de sua carreira comprovam isso sem margem para dúvidas. Mesmo entregando seus dois maiores clássicos logo em suas cinco primeiras produções, Fincher cresceu a cada filme lançado, aperfeiçoando com o tempo sua técnica e seus temas. Em mais de 20 anos de carreira em longas-metragens, o cineasta responsável por Clube da Luta e Seven tornou-se mais incisivo e sutil em suas obras, tornando-o capaz de causar ainda mais impacto no público que acompanha e prestigia seu trabalho.
Garota Exemplar é prova definitiva desta sua evolução na direção. Baseado no livro homônimo escrito por Gillian Flynn (que também assina o roteiro da produção), o décimo trabalho de Fincher como diretor apresenta em sua estrutura e narrativa todas as características do cineasta, que as usa com excelência e sagacidade para contar a história de Nick Dunne (Ben Affleck), um jornalista cuja esposa Amy (Rosamund Pike) desaparece no aniversário de cinco anos de seu casamento. Com a polícia no caso, as pistas para o sumiço da mulher aos poucos apontam que Nick seria o verdadeiro culpado pelo crime, e suas ações apenas agravam a incriminação.
A partir daí, a trama do filme se desenrola sob dois pontos de vista: o de Nick, que busca desesperadamente provar sua inocência com a ajuda da irmã Margo (Carrie Coon) e do advogado celebridade Tanner Bolt (Tyler Perry); e o da própria Amy, que narra através de seu diário os acontecimentos que levaram a seu sumiço em flashbacks. Alinhados com perfeição pela montagem de Kirk Baxter, estas duas linhas narrativas se complementam com uma organicidade eficiente - e de transições fantásticas, a exemplo do corte de um plano em que o casal protagonista está a ponto de se beijar para um em que a polícia coleta DNA da boca de Nick - e constroem juntas a tensão da história, repleta de reviravoltas surpreendentes e críticas à sociedade.
Essas críticas são de fato um dos grandes trunfos para o sucesso artístico de Garota Exemplar. Do suspense gerado pelo desaparecimento de Amy, o roteiro de Flynn tece um verdadeiro ataque à superficialidade vivida pela sociedade atual, hiperconectada em um mundo dominado pela internet e suas redes sociais, e à midiatização do jornalismo, cujo sensacionalismo é capaz de condenar sem remorso a vida de um ser humano por causa de um crime que não cometeu. Mas ao invés de deixar esta desconstrução social exposta, Fincher é sagaz em mantê-la entranhada à trama e seus acontecimentos, permitindo que ela contribua para a narrativa enquanto desempenha com sutileza sua função original.
O diretor também é feliz na maneira como realiza o crescimento da história e de seu ritmo estabelecido. Além da montagem, Fincher usa ainda de uma trilha sonora atmosférica e sem obviedades de Trent Reznor e Atticus Ross (sua terceira parceria bem sucedida com a dupla) para trabalhar a tensão da produção com elementos tradicionais de seu trabalho como a fotografia esverdeada ou a câmera enquadrando os personagens de baixo para cima.
O elenco também contribui bastante nessa elaboração, além de ser eficiente em suas respectivas funções. Enquanto Affleck traz em seu Nick Dunne uma brutalidade e desgosto pela vida como disfarce para sua fragilidade interior e acomodada, a atuação de coadjuvantes como Coon, Neil Patrick Harris e Perry (surpreendentemente excelente em seu papel) é essencial para realçar as caraterísticas e imperfeições dos protagonistas.
Mas quem rouba de fato a cena aqui é Pike. Escolhida a dedo pelo diretor, a atriz inglesa faz do potencial previsto em sua Amy uma realidade, e torna evidente a consciência fatal da protagonista com o jogo de aparências da sociedade que a rodeia. Ela contudo não torna exagerado em nenhum momento as patologias de sua personagem, transitando com vigor e astúcia entre a contenção e a explosão performáticas para compor a frieza necessária ao papel.
Mais um trabalho brilhante para a já consagrada carreira de David Fincher, Garota Exemplar é um filme de reflexões brutais sobre a sociedade e de suas instituições, beneficiado no processo por aspectos técnicos muito bem trabalhados e um elenco afinado. Na crítica ao jogo de superfícies da sociedade, é irônico que o longa brilhe justamente por construir seu pessimismo racional entre tantas dimensões e facetas, sejam estas filosóficas, políticas, sociológicas... e "românticas".

Nota: 10/10

Segunda Opinião: Novo filme de David Fincher trata de temas sociais em uma história que prende o espectador

Por Alexandre Dias

David Fincher é um diretor ímpar por, normalmente, conseguir unir em seus filmes uma história impactante e envolvente com questões presentes na sociedade que merecem ser discutidas e pensadas. Em Garota Exemplar não é diferente. Ao mesmo tempo em que temas como a mídia e o casamento são levantados, o espectador não consegue parar de se surpreender durante os seus 149 minutos de duração.
O longa adapta o romance de Gillian Flynn (que também assina o roteiro), em que a esposa de Nick Dunne (Ben Affleck), Amy Dunne (Rosamund Pike), desaparece estranhamente no dia de seu quinto aniversário de casamento. Nick acaba por se tornar um dos principais suspeitos e procura provar sua inocência, assim como investigar o que aconteceu com Amy.
As personalidades do casal de protagonistas são muito bem trabalhadas (e interpretadas) ao longo do filme; à medida que elas vão sendo exploradas, fatos impactantes ocorrem, o que altera o próprio curso da trama e sempre desperta o interesse do espectador em saber as consequências que virão. Podemos observar também, que estes momentos da obra são acompanhados magistralmente pela trilha sonora de Trent Reznor, líder do Nine Inch Nails, e Atticus Ross, aonde a exata sensação de cada cena é transmitida, especialmente nas mais tensas.
Além da história envolvente, Fincher estabelece ótimas reflexões acerca do casamento e da mídia. No primeiro caso, o fator do desgaste matrimonial é trazido à tona, em que a acomodação dos cônjuges em uma vida rotineira e comum vai diminuindo a fervente paixão inicial. Quanto ao quesito midiático, percebe-se como a imagem externa de uma pessoa nos meios de comunicação pode induzir toda uma população à determinada opinião: desde um sorriso em uma foto como a proximidade com um indivíduo podem ser expostos de maneiras diferentes pela informação.
Assim como em Clube da Luta, David Fincher faz a pessoa acabar de assistir Garota Exemplar com a cabeça cheia de pensamentos e opiniões e que só se desenvolverão um tempo depois de absorver tudo o que viu. Quando isso acontece, provavelmente a satisfação será ainda maior do que quando se sai da sala de cinema, pois haverá a percepção de que o longa tem mais significados do que se observa inicialmente.

Nota: 10/10

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