quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Crítica: Sniper Americano

Retrato profundo do maior atirador dos EUA fraqueja sem ideologia de guerra.

Por Pedro Strazza.

É inegável que a figura do cavaleiro solitário esteja presente em toda a carreira de Clint Eastwood. De sua revelação como ator na Trilogia dos Dólares de Sergio Leone aos seus trabalhos como diretor nos dias atuais, Eastwood carrega certo fascínio por personagens que carreguem certo mistério em sua solidão e sejam justiceiros ocasionais, oferecendo seus serviços aos mais desamparados. Não a toa, seus filmes na direção muitas vezes trazem essa pessoa (presente bastante no faroeste) para os mais diferentes contextos e situações, e não somente aplicam esse homem a uma nova realidade como também oferece ao cineasta a oportunidade de desconstruí-lo e analisá-lo.

Em Sniper Americano, essa sua metodologia segue inalterada, mas ganha curiosas pinceladas. A cinebiografia do soldado estadunidense Chris Kyle, considerado pelo governo o maior atirador da história do país (foram mais de 160 mortes atribuídas à sua pessoa), traz ao diretor a oportunidade de fazer sua análise em meio à Guerra do Iraque, um contexto atual e ainda polêmico nos EUA. Além disso, Eastwood tem em mãos uma figura controversa a ser retratada: Se Kyle serviu como anjo para seus colegas militares, ele também é responsável por realizar sozinho um banho de sangue, assassinando homens, mulheres e crianças.

Essa questão é justamente o tema central do filme. Da infância aos últimos dias da vida de Kyle (Bradley Cooper), o diretor emprega sempre na narrativa uma dualidade sensível aos atos do protagonista, ressaltando tanto as boas intenções quanto os efeitos danosos de seus atos. E nessa problemática da moralidade de ações, o discurso do pai de Chris (Ben Reed) sobre ovelhas, lobos e cães pastores surge como um norte para o espectador se guiar na personalidade complexa do personagem, mesmo que esta seja à primeira vista bastante superficial e estereotipada - e nesse ponto é importante ressaltar o talento de Eastwood ao compor a figura sulista conservadora tradicional em Kyle apenas no início visando nos dar essa falsa impressão.

Mas se na realidade do dia-a-dia o peso das escolhas já é sensível, na guerra elas são extrapoladas. É aí que aparece a grande força da produção: A cada tiro disparado e morte assinalada, a figura solitária de Kyle torna-se mais presente e suas próximas escolhas são ainda mais duras, chegando a pontos de limite dolorosos. O tão conhecido vício da guerra do cinema é aqui transformado pelo roteiro de Jason Hall e a direção de Eastwood em um vício de justiça distorcido, gerado pela formação patriótica do protagonista na infância ("O mal está em todos os lados"). E como o Justiceiro da Marvel, a justiça que Kyle busca é só a do momento, como bem atesta seus encontros com soldados fora do conflito.

Para essa construção se concretizar na tela, Bradley Cooper faz uma verdadeira encarnação do monstro que é o soldado. Extremamente encorpado e com um sotaque texano bem aplicado, o ator concebe o sniper protagonista com todo o preconceito e patriotismo necessários, além de sempre tornar perceptível ao público a ingenuidade do lado patriótico do personagem, responsável por levá-lo às situações capazes de quebrar essa sua visão de mundo simplista. E Sienna Miller, como a esposa em desespero pelo marido na guerra, surge para complementar seu trabalho como contraponto ideal a sua obsessão por justiça desenfreada.

O grande problema de Sniper Americano, porém, surge da própria maneira como Eastwood trabalha seus filmes. Ao preferir explorar a personalidade de seu protagonista em caráter exclusivo (algo comum a tantas outras obras suas), o diretor abandona quaisquer outros temas de importância variada ao longo da narrativa, como a relação com outros personagens (é aí que o trabalho de Miller acaba bastante prejudicado) e o julgamento da guerra. Mas esta última faz-se importantíssima para o gênero ao qual Clint trabalha aqui, e sem ela grande parte dos simbolismos do longa (as bandeiras dos EUA, o corredor de feridos, a retratação do povo iraquiano) soam vazios por essência. E no mundo de patriotas e tragédias em que vive Kyle, é estranho que a obra não procure ressaltar nem um dos dois lados - culpa, talvez, do próprio objetivo biográfico ao qual o filme é encarregado.

Atmosférico em seus conflitos (graças a um excelente trabalho da equipe de som), mas mal acabado em alguns quesitos técnicos (o uso de bonecos como bebês e as visões aéreas dos conflitos deixam evidente isso), Sniper Americano compensa sua falta de ideologia com um retrato profundo de uma pessoa fragmentada por ver suas escolhas serem questionadas e agraciadas em todos os momentos. O cavaleiro solitário de Clint Eastwood entrou em crise nos tempos contemporâneos, e ninguém melhor que o próprio Homem Sem Nome para ressaltar isso.

Nota: 8/10

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