domingo, 29 de março de 2015

Crítica: Vício Inerente

Quando a maneira como se conta uma história ofusca a própria.

Por Pedro Strazza.

Por mais que andem juntos e em sintonia, roteiro e narrativa são dois elementos cinematográficos bastante distintos e independentes entre si. O primeiro, tarefa óbvia de um roteirista, tem como missão básica estabelecer trama e personagens, e pode trazer nestes algum significado maior. Esta última tarefa também é atribuída ao segundo, que surge coordenado pelo diretor tanto para transpor a história escrita à realidade da tela quanto para dinamizá-la e torná-la atrativa ao espectador, sugando-o a seu universo e seus acontecimentos (sejam estes reais ou de pura fantasia).
Argumento e direção, portanto, se unem no momento em que o diretor decide por conduzir o filme e a atenção de seu público pela história a ser contada, mas por mais lógico que seja esse não é o único caminho disponível. Um grande exemplo dessa multiplicidade de opções é Vício Inerente, novo trabalho de Paul Thomas Anderson cujo grande trunfo não é a trama narrada por Sortilège (Joanna Newsom) ou seus simbolismos, mas sim a própria narrativa elaborada pelo diretor.
Adaptação do livro homônimo escrito por Thomas Pynchon (a primeira autorizada pelo escritor), o longa acompanha Larry "Doc" Sportello (Joaquin Phoenix), um detetive particular hippie que certa noite dos anos 70 é avisado por sua ex-namorada Shasta Fay (Katherine Waterston) de um esquema de assassinato de um grande empresário (Eric Roberts). Com o sumiço da garota e da vítima, Doc começa a investigar as circunstâncias dos desaparecimentos, mas para resolver o caso terá de enfrentar não só as mais variadas resistências à sua presença como também a própria mente, perdida no meio de tantos casos policiais e drogas usufruídas.
Apesar de ter um mistério complicado como tema de sua história, Anderson prefere focar suas atenções no protagonista de Vício Inerente. Centrado por completo na figura de Sportello (são um ou dois os momentos em que ele não está em cena), o diretor e roteirista força o espectador a acompanhar o desenrolar dos fatos pela visão de Doc, esta prejudicada pelos efeitos entorpecentes da maconha e outras substâncias.
É justamente essa ausência de um ponto de vista confiável que traz fascínio à produção. Complexo e repleto de personagens ocasionais (sem contar as outras investigações ocorridas no período), a busca realizada por Larry torna-se ainda mais difícil para ele e o público por causa de sua mente, mergulhada em um clima de paranoia e teorias loucas sem fim. E essa moral duvidosa do protagonista é acentuada pelo diretor, que não economiza em notabilizar o clima demente por meios técnicos, como nos closes lentos em longos diálogos ou na continuidade da trilha sonora setentista em cenas estabelecidas em diferentes cenários, e (principalmente) narrativos, a exemplo da própria Sortilège e sua dualidade como representação máxima da imaginação ébria de Sportello e de persona presente em toda viagem causada pelas drogas.
Nesse contexto de loucura e confusão, a ambientação acaba por ser um fator importante para conceber o estado em que se encontra Doc. O design de produção de David Crank e os figurinos de Mark Bridges combinam-se para elaborar uma Los Angeles multicolorida e lisérgica, feita para estabelecer o detetive em uma sociedade que não apenas aprovam seu estilo descompromissado de vida, mas o vivem com intensidade.
Assim, mergulhado em um universo esfumaçado e conduzido por um personagem que não dá motivo algum para ser confiado, o espectador torna-se refém da narrativa em uma história completamente sem nexo, mas meticulosamente planejada para tal. Isso porque Paul Thomas Anderson é sábio em não tornar o filme vítima de sua própria loucura, e desenvolve o roteiro com todas as estruturas clássicas - os três atos, os elementos noir, o arco de amadurecimento e a desconstrução da sociedade analisada típicos de sua carreira, etc.
Os simbolismos (bastante bem-humorados, a exemplo da reprodução da Santa Ceia com hippies em uma pizzaria) e os personagens representativos (o detetive vivido por Josh Brolin surge brilhante como homem racional frustado pela realidade dos tempos) estão presentes ali; o que está ausente mesmo em Vício Inerente é a trama lógica, típica de produções do gênero e que não encontra espaços para aparecer na viagem empreendida por Doc em busca de seu amor.

Nota: 10/10

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