sábado, 6 de fevereiro de 2016

Crítica: O Regresso

Iñárritu e DiCaprio buscam o destaque em egotrip disfarçada de busca existencialista.

Por Pedro Strazza.

Ainda que muito provavelmente tenha sido feito sem qualquer tipo de planejamento, parece ter se tornado uma constante na filmografia de Alejandro González Iñárritu o elemento do reconhecimento. Seja nos múltiplos protagonistas de Babel que eram incapazes de enxergar o sofrimento do outro ou no anseio dos atores egoístas de Birdman pela salva de palmas, os filmes do cineasta mexicano mostram uma necessidade incomum em evidenciar esse ato de distinção do indivíduo em relação à sociedade, primeiro em um aspecto mais social e, depois, em movimentos de pura egolatria. É algo bastante palpável na trajetória de seus trabalhos indicados ao Oscar de Melhor Filme, que encontra agora um angustiante novo capítulo na sua obra mais bem recebida pelo público e crítica estadunidense até o momento, O Regresso.

Esta importância desmedida de Iñárritu em satisfazer a si mesmo, que já se manifestava em Birdman com certo incômodo, acontece aqui com doses cavalares. Adaptação do livro de mesmo nome de Michael Punke (que por sua vez é inspirado em fatos), o longa, que conta a história de Hugh Glass (Leonardo DiCaprio), experiente caçador de peles que durante uma expedição em 1823 foi atacado por um urso e deixado para morrer pelos colegas, surge como uma espécie de oportunidade única para o diretor demonstrar suas técnicas "únicas" em uma obra cuja ambientação e estrutura remetem diretamente ao faroeste, um dos gêneros mais fundamentais na gênese do cinema estadunidense.

Mas como bem diz o próprio em entrevistas, o gênero para ele soa como algo irrelevante, que o atrapalha em seus objetivos de conceber suas produções cinematográficas únicas, e a partir daí as coisas começam a desandar. Porque ao recusar se enveredar pelo gênero no intuito de abordar com exclusividade os "profundos" temas universais, o diretor logo se vê na constante tarefa de negar ao filme quaisquer reflexos criados pela própria história.

É algo que se percebe, num primeiro momento, na construção narrativa do ataque indígena ao acampamento do Capitão Andrew Henry (Domhnall Gleeson), o primeiro gatilho da trama. Concebido como um dos vários e característicos planos-sequência de Iñárritu, essa cena de início parece ser puxada pela ação, o caos gerado pelo elemento surpresa do conflito, que pega os caçadores desprevenidos e os deixa desesperados por suas vidas. Mas assim que Henry anuncia a retirada da tropa e a consequente fuga pelo barco, a tônica da cena muda por completo: acompanhado pela trilha sonora climática de Alva Noto e Ryûichi Sakamoto, a câmera passa a focar no sofrimento daqueles que estão prestes a morrer, com um olhar reflexivo e dito superior, desinteressado da situação da qual tomava antes como principal.

Esta desnecessária luta interior entre gênero e mensagem, travada com tanta ferocidade e dominada pelo último em O Regresso, também serve de fachada para o descontrole egocêntrico que acontece no longa. A conexão do homem com a natureza ao seu redor, temática central e única da obra, é martelada à exaustão pelo diretor e seu parceiro no roteiro Mark L. Smith, que com situações de renascimento (o interior do cavalo, a cabana improvisada, a cova) e planos que miram o céu e a copa das árvores (em algum tipo de reflexão que nunca se concretiza) são incapazes de levar o assunto para algum lugar além da admiração imediata com a estética - e isso acontece também no fatídico ataque do urso, também filmado num plano-sequência cujo maior anseio é muito mais "o início do ciclo ao qual o protagonista se submete" e menos da construção dessa cena para a história.

E é de apuros estéticos com inclinação ao existencial que o filme sobrevive, mesmo que para isso tenha de sacrificar toda a sua estrutura e se entregar ao egotrip dos envolvidos. O curioso, entretanto, é que tais arroubos nunca conseguem escapar de fato do gênero ao qual estão submetidos e a tanto renegam por estarem realizando uma obra "de arte": Se por um lado a fotografia de Emmanuel Lubezki se dedica com paixão furiosa em aproveitar as paisagens naturais da Columbia Britânica para criar lindos e opressivos cenários, marcados pela plasticidade e o encanto com a luz natural dos ambientes, ela não escapa também da ligação inerente de tais locações com o faroeste, manifestados em momentos como o encontro de Glass com uma manada de bisões. Essa cena de imediato remete a Rastros de Ódio, célebre trabalho de John Ford também dotado de tal conexão entre ser humano e natureza (menos as pretensões ególatras) e junto dos trabalhos de Terrence Malick um exemplo dos filmes ao qual a trama de vingança parece se utilizar nos piores momentos narrativos.

O ápice de todo esse exercício auto-indulgente encontra-se, claro, na figura do ator protagonista, que tem para si a tarefa de carregar esse peso nada agradável. Para DiCaprio, entretanto, é um peso que logo se traduz em arma na sua já mitológica procura pelo Oscar: com um personagem que exige muito do corporal, pouco do diálogo e é auxiliado por coadjuvantes contentes em exercer seu papel secundário (Gleeson e principalmente Tom Hardy, únicos com bom senso neste mar tão individualista do filme), ele logo abandona qualquer aspecto de composição de atuação voltado ao personagem e a direciona para suas motivações pessoais, em uma performance que pouco faz pela história e se arrasta, a passos lentos e cuspindo sangue e saliva, em busca do clamor concedido pelas premiações.

É essa dedicação, essa entrega voltada para a congratulação posterior, pelo qual O Regresso acaba por se aproximar ainda mais da realidade vivida em Birdman. A diferença é que, se no filme de bastidores o egocentrismo inerente da história era tratado com um quê de ironia, um humor capaz de reconhecer mesmo de leve o ridículo das motivações de todos os seus personagens, aqui é como se estes mesmos personagens estivessem por trás e na frente das câmeras, comandando todos os esforços do filme para atender suas próprias ambições e entregar uma "fundamental" experiência transcendental.

Nesse processo, o público acaba por se tornar o mesmo que no filme anterior de Iñárritu assistia a peça de estreia do ator Riggan Thomson como diretor, inocente sobre o que acontece por trás dos panos. E tudo isso fica claro quando, no fim, o protagonista olha para a câmera e encara seu espectador em um misto de angústia e indecisão: o que se vê ali na tela não são os olhos de Hugh Glass em um dilema existencial após o fim de uma jornada de sofrimento e luto, mas sim os de DiCaprio, clamando desesperado pelo reconhecimento que há tanto tempo anseia. Se as palmas devem ou não acontecer, é algo que cabe ao espectador decidir.

Nota: 3/10

0 comentários :

Postar um comentário