sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Crítica: Paterson

Elegia aos hábitos do dia-a-dia.

Por Pedro Strazza.

Como todo filme sobre poesia que se preze, Paterson deixa mais claro sua proposta em uma de suas cenas finais. Nela (e sem entrar em muitos detalhes sobre os eventos da trama), após experimentar um momento trágico, o protagonista vivido por Adam Driver vai passear sozinho para clarear as idéias, e depois de muito procurar encontra um lugar para descanso em um banco de frente para a cachoeira que é cartão postal da cidade onde mora. Na composição de um dos planos da cena que ocorre a seguir, vemos o personagem de costas olhando para esse monumento da natureza, que no alto tem uma bandeira dos EUA hasteada e tremulando.

A maneira como o símbolo estadunidense máximo é inserido - de um modo quase no estilo de um confessionário, como se Driver estivesse lamentando suas dores não ditas para a bandeira – revela o quão ligado o longa do diretor Jim Jarmusch está ao cenário do país, o que ajuda a entender a estrutura até então enigmática. Esse mistério surge, porém, não por causa de uma complexidade maior da trama, mas sim pelo que é a aparente vida trivial do protagonista.

Escrito por Jarmusch, o filme acompanha durante uma semana o cotidiano de Paterson (Driver), um motorista de ônibus da cidade de Paterson que tem uma rotina das mais repetitivas: Ele acorda ao lado da esposa Laura (Golshifteh Farahani) às seis e pouco da manhã, toma sucrilhos em um copo de leite, caminha em direção ao trabalho, escreve suas poesias em um caderno secreto antes de começar o dia, dirige o ônibus, entrega o ônibus ao parceiro (que vive a reclamar dos problemas financeiros de casa), volta caminhando para casa, conversa com a mulher, janta, leva o cachorro para seu passeio noturno e termina a noite no bar local. Sua ordem estabelecida, porém, começa aos poucos a ser desfeita nos sete dias que se seguem.

Essa interrupção na rotina é somente um dos muitos traços que Paterson tem em comum com Amantes Eternos, longa anterior do diretor que apesar de tratar de vampiros imortais também tinha na repetição algo a ser enfrentado e a arte como meio de escape à dura realidade do país nos tempos posteriores à crise de 2008. O que há de diferente entre os dois trabalhos é a maneira como essa fuga atua nos personagens: Se os apreciadores de sangue humano de Tilda Swinton e Tom Hiddleston apreciavam a música e a literatura para evitar considerar sobre os rumos históricos, o motorista de ônibus de Driver escreve sua poesia baseando-se no olhar, tirando belas palavras da banalidade de seu pequeno mundo de forma a disfarçar um tempo nublado que se forma no horizonte.

Isso ocorre porque Jarmusch aqui realiza uma espécie de elegia a uma vida mais simples, calcada num american way que presume acima de tudo o bem estar familiar de casa e busca a beleza nas pequenas coisas. Não à toa, existe no longa uma presença constante de duplos que se complementam ou são iguais, dos dois pares de gêmeos presentes na história aos casais que entram em choque para depois se refazerem, passando pelo divertido encontro de Paterson com uma garotinha que também escreve poesia. Mesmo o relacionamento do protagonista com a esposa passa por esse processo, com o deleite do motorista com o ordinário contrapondo a necessidade de Laura em se expressar ou de fazer algo diferente todo dia.

A vida da cidade pacata torna-se então num oásis dentro do caos que se instala nos EUA do pós-crise, cuja inevitabilidade aos poucos se instala. Nesse sentido, as interrupções nos hábitos do protagonista servem para denotar a precariedade do sistema ao qual ele e os outros estão inseridos, formando uma alegoria para as mudanças estruturais do país de tempos recentes. Dos movimentos mais estrondosos (o ônibus quebrado, a grande tragédia mencionada no início do texto) aos mais discretos (o atraso para a caminhada, quando Paterson desperta do sono e não vê a mulher na cama), o filme desfaz o espaço na realidade encontrado pelo personagem principal para suportar o cotidiano.

Tal desfazimento, porém, não impede Paterson de ser um filme inesperadamente otimista. Não apenas pela maneira como retrata a cidade – bem distante da decrepitude da Detroit de Amantes e próxima de um sonho com toques realistas -, Jarmusch faz do longa uma mensagem de esperança para essas mudanças que chegaram, no fim preservando a funcionalidade da rotina e fazendo do futuro uma página em branco que nas palavras do estrangeiro que conversa com Paterson no momento da cachoeira tem “mais potencial que as escritas”. Mesmo ingênua, esta é uma forma agradável de pensar os próximos caminhos e enxergar a arte como canal deste processo.

Nota: 7/10

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