quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Crítica: Aliados

A dubiedade do olhar.

Por Pedro Strazza.

Diretor que se interessa por efeitos visuais digitais pelo menos desde os tempos de Uma Cilada Para Roger Rabbit e Forrest Gump, Robert Zemeckis vem se dedicando nos últimos filmes a conceber novas formas de aliar o potencial do digital com os elementos de drama e comédia que caracterizam suas obras. Depois de focar-se exclusivamente no CGI e na tecnologia de captação do movimento no início do século (o que gerou a "trilogia" formada por O Expresso Polar, A Lenda de Beowulf e Os Fantasmas de Scrooge), o cineasta passou a trabalhar em anos recentes o digital como elemento cênico, a partir da intrínseca relação de tais efeitos com sua fisicalidade questionável - a produção destas imagens, afinal, é artificial por essência, não chegando a existir de fato nos planos filmados.

Dentro desta lógica, Aliados é uma progressão natural naquilo que foi desenvolvido anteriormente pelo diretor em O Voo e A Travessia, duas produções que aproveitavam da relação do indivíduo com um cenário digital "falso" - o pouso forçado do avião no primeiro, a travessia entre as Torres Gêmeas do segundo - para trabalhar os arcos de seus protagonistas. A diferença é que agora Zemeckis corta os eventuais intermediários e passa a trabalhar o drama dentro desta relação por meio de uma história de espionagem cujo conflito central reside na aflição de seu protagonista frente a um momento que ele não consegue saber se foi real ou não.

Escrito por Steven Knight, o filme ambientado na Segunda Guerra se inicia com a chegada do oficial da inteligência canadense Max Vatan (Brad Pitt) em Casablanca, no Marrocos, onde irá executar uma missão de assassinato de um embaixador nazista junto de uma agente chamada Marianne Beauséjour (Marion Cotillard), uma exilada francesa designada para fingir ser sua esposa e pelo qual ele logo se apaixona. Ainda que não traga o principal drama da produção à tona, é logo neste primeiro ato que Zemeckis anuncia com velocidade e discrição suas intenções, desde a cena tensa de abertura até as referências visuais ao Casablanca de Michael Curtiz (clássico cuja elegância e propensão à desconfiança é tido como norte para o diretor aqui): todos os ambientes e pessoas que o protagonista habita e conhece na história são tão dúbios quanto o deserto digital no qual aterrissa de para-quedas no começo, uma regra a ter seus limites testados mais para frente.

O que não há de falso no cenário, pelo menos a princípio, é Beauséjour, que serve como guia para se estabelecer neste espaço instável e sempre vigiado e cuja figura ele logo se apaixona, culminando depois na relação em que o filme estabelece seu drama. Depois de cumprida a missão e passar um ano casado com Marianne, Max é informado pela inteligência britânica que sua esposa talvez possa ser uma espiã alemã, e caso a informação seja confirmada ele deverá executá-la.

Não convém dissecar as viradas que se sucedem à partir deste fato, mas é válido afirmar que Zemeckis constrói em Aliados o que é pelo menos até o momento o seu melhor filme na mesclagem de drama com efeitos digitais. Se em longas anteriores o cineasta esbarrava no desenvolvimento da história para chegar no que realmente o interessava (até chegar no clímax A Travessia soava um tanto quanto burocrático na execução, por exemplo), aqui o drama vivido pelos protagonistas se constrói em cima da dubiedade das evidências visuais de seu passado e na sua capacidade de provar ao mundo o quanto elas foram verdadeiras.

Para isso acontecer, o longa recorre bastante a elementos cênicos capazes de tornarem incerta não só a memória de Vatan como também do espectador, e é aí que entram os cenários e planos digitais de Zemeckis. Tão efetivos quanto os vários espelhos presentes na narrativa - o (belo) plano "intrusivo" do diretor da vez envolve o protagonista observando Beauséjour por um deles, e eles posteriormente são usados para acentuar a desconfiança crescente sobre a figura da esposa -, os efeitos visuais atuam na obra em sentido construtivo e destrutivo, criando em alguns momentos a impressão de simulação ao romance vivido pelos dois quanto para validar a paixão de ambos. Feita por computador, a tempestade de areia que surge no começo como oportunidade do casal consumar seu amor pela primeira vez é também a única comprovação real da existência do amor: é o único momento da história inteira em que Max e Marianne estão de fato sozinhos, sem serem observados por outros.

Saber que a experiência vivida foi real e ao mesmo tempo ser incapaz de prová-lo aos outros, dentro de uma relação construída no falso (os dois se conheceram em uma missão em que se disfarçam de marido e esposa, bom lembrar), é o que torna Aliados então uma obra tão curiosa em suas pretensões. Zemeckis alia muito bem o potencial dramático de seu elenco - Pitt com sua figura de galã aspirando às poses de Humphrey Bogart, Cotillard lidando com tranquilidade o viés enigmático de sua personagem - com o que busca de seus ambientes interiores luxuosos e exteriores artificiais para culminar em um filme onde o olhar é antes um elemento corrosivo e pertencente aos outros que um objeto central na validação dos atos. Dentro deste cenário tão incerto talvez o melhor seja ser condenado à cegueira, tal qual o trágico destino do oficial vivido por Matthew Goode na trama.

Nota: 8/10

0 comentários :

Postar um comentário