quinta-feira, 9 de março de 2017

Crítica: Silêncio

Adaptação do livro de Shusaku Endo encontra novas dúvidas ao teste de fé de Martin Scorsese.

Por Pedro Strazza.

Embora seja celebrado por seus filmes de máfia e a pretensa "realidade" sangrenta que estes carregam, Martin Scorsese é um diretor que a bem da verdade traz como grande objeto de investigação o sistema e a convicção de seus integrantes de estarem em controle do funcionamento das coisas mesmo estando longe do comando. Seja nas obras em que trabalha o processo em toda a sua grandiosidade ou aqueles onde tudo se realiza sob o pretexto da farsa, o cineasta americano sempre enxergou em personagens como o Johnny Boy de Caminhos Perigosos ou figuras reais como Jordan Belfort uma espécie de grande busca do indivíduo para reafirmar suas forças dentro da ordem social que o cerca, com a lei contra ou a seu favor. É uma jornada capaz de englobar tramas de vingança (Gangues de Nova York), ascensões e declínios do poder (o arco tradicional de seus trabalhos voltados para o crime) e até mesmo de sátira (o pesadelo kafkiano de Depois de Horas).

Todas as suas histórias, porém, não deixam de no fim se estabelecerem no conceito de fé, um tema caro ao diretor desde a infância (na sua tentativa frustrada de entrar para a Igreja e se tornar padre) e que ora ou outra ocupa posição central em seus filmes. O curioso destes projetos é que é justamente por eles onde Scorsese aborda de fato o questionamento da crença, elevando a dúvida de seus protagonistas sobre o quão passíveis de confiança são as organizações e rituais - bem como o senso de ordem envolto a isso - no qual se inserem. Este incômodo de certa forma une em torno de um mesmo eixo as narrativas de A Última Tentação de Cristo, Kundun, Vivendo no Limite e agora Silêncio, adaptação do livro homônimo de Shusaku Endo que o cineasta vem desenvolvendo desde os anos 90 e trata também de uma crise de fé.

Escrito por Scorsese e Jay Cocks, o longa segue os percalços de Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), missionários portugueses para encontrar no Japão feudal o seu professor e mestre, o padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson). Famoso propagador da fé jesuíta no país mesmo depois do cristianismo ter sido proibido pelo governo, Ferreira segundo os rumores renunciou a sua fé perante o temível inquisidor Inoue (Issei Ogata), uma informação que sozinha ameaça a reputação da Igreja em seus esforços de disseminação. Buscando saber a verdade e reforçar os laços clandestinos da religião no local, a organização envia os dois sacerdotes, que logo percebem que há algo a mais em jogo.

Se em termos estruturais o filme é bastante fiel ao livro - as únicas maiores "mudanças" vem dos esclarecimentos visuais sobre o fim da história, bem como o posicionamento real do fiel Kichijiro (Yosuke Kubozuka) -, na narrativa Scorsese encontra um bom espaço para trabalhar a relação de Rodrigues com seu arco de provação pelo viés da ilusão que tanto o agrada em produções do tipo. Uma ilusão que vem não no sentido de satirizar os movimentos do missionário, mas de criar instabilidades no suposto martírio que ele e seus fiéis japoneses encaram em favor do Deus cristão.

Este questionamento é muito similar ao dos outros três filmes do diretor centrados no tema da fé citados acima, mas é com a cinebiografia do Dalai Lama que Silêncio no fim tem maiores semelhanças estruturais. Assim como em Kundun, Scorsese trabalha aqui a dúvida do protagonista com sua própria posição religiosa como um elemento central da jornada: se Rodrigues chega no Japão crente de que está lá para auxiliar os fiéis japoneses clandestinos a qualquer custo, ele aos poucos começa a entender que quem está mesmo sob um teste de fé é ele.

É algo anunciado de forma desapercebida na abertura do filme - as névoas cobrem o cenário no qual Ferreira abdica de sua posição sacerdotal de forma a sugerir tanto um misticismo quanto a dúvida sobre o ato -, mas este viés duvidoso da posição de Rodrigues é a partir da metade o que configura a real potência do longa e suas intenções. Do momento que o intérprete vivido por Tadanobu Asano anuncia ao padre que ele "abraça ilusões para as chamá-las de fé" em diante, a história vira o jogo: não é mais o martírio dos fiéis - que pagam com a vida em mortes lentas e extremamente dolorosas - o objeto a ser questionado pelo espectador, mas sim a ilusão do missionário em relação à nobreza de suas intenções.

Esta virada, vital às pretensões da obra, é também talvez o motivo que levou Scorsese a ter tamanho interesse pela história por tanto tempo. Pois se há um elemento comum a todos os longas ficcionais do cineasta é esta convicção no sistema como uma estrela-guia que nunca se move, com a falta de fé (pela crise pessoal ou, como é mais comum, a traição) servindo de clímax fundamental para a verificação de sua eficácia.

No caso de Silêncio este momento final de atestamento cai na armadilha da reafirmação da crença que já é típica ao cinema do diretor (o último plano principalmente), mas ao mesmo tempo ele evita manter em curso a legitimação dos atos anteriores que seus outros filmes de fé realizavam sem pensar duas vezes - A Última Tentação, por exemplo, não poderia destituir o valor do sacrifício de Jesus apenas porque este desejou a posição humana em detrimento da condição divina. Despido desta convicção, o filme concebe um ponto de crise não resolvido que o faz se sobressair em relação aos outros trabalhos de Scorsese sobre o tema, alimentando uma desilusão que lhe é benéfica agora e muito promissora para o futuro.

Nota: 8/10

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