terça-feira, 11 de abril de 2017

Entrevista: Vincent Carelli (Martírio)

Diretor de documentário sobre caminho sofrido dos índios Guarani e Kaiowá conversou sobre a recepção do filme e sua relação pessoal com a obra.

Por Pedro Strazza.

Chega aos cinemas de mais de vinte cidades brasileiras nesta quinta-feira o filme Martírio, documentário dirigido por Vincent Carelli que disseca o percurso difícil vivido pelos índios Guarani e Kaiowá na tentativa pacífica de retomar suas terras sagradas. Estreando pelo projeto Sessão Vitrine Petrobrás, o filme de mais de duas horas e meia  de duração é também uma grande análise da opressão histórica vivida pelo índio na sociedade brasileira, aliando documentos oficiais, imagens de arquivo e o próprio testemunho do diretor para evidenciar o quão enraizado está na História o genocídio dessas aldeias pelas mãos do Estado - seja qual for a sua encarnação.

Com o filme terminando sua passagem pelo circuito de festivais - onde venceu prêmios em lugares como o Festival de Brasília (evento que também sediou sua premiere, poucos dias depois do impeachment da presidente Dilma), a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o Festival Internacional de Cine de Mar del Plata - e prestes a entrar no circuito, O Nerd Contra-Ataca entrevistou o diretor, que falou mais sobre o processo de produção do longa e revelou alguns detalhes de seus próximos projetos. Confira o bate-papo na íntegra abaixo:
Vincent Carelli

Desde que o filme estreou no Festival de Brasília, Martírio vem sendo muito bem recebido. Antes do filme efetivamente estrear no circuito comercial, o senhor já está satisfeito com o resultado obtido pelo filme até aqui?

A gente está muito satisfeito. Começar por Brasília foi maravilhoso... foi uma catarse coletiva porque eram apenas alguns dias depois do golpe, então tinha um certo calor [risos]. A gente se sente contemplado com o esforço que foi fazer isso, foi uma espécie de surto necessário apesar do desafio. Então a gente está achando fantástico porque este filme é pra ser mais que um filme: é um alerta, um questionamento, uma releitura da História do Brasil.

O mais interessante é que as pessoas saem comovidas, toca no pessoal. Houveram muitos retornos para agradecer, tanto pela parte histórica, que as pessoas descobrem uma versão da História do país na versão dos vencidos, quero dizer, é um aspecto completamente oculto da realidade nacional, o relacionamento do Estado brasileiro com os povos indígenas; e outras saem muito abaladas, enfim... todo mundo sabe que isso está acontecendo, mas mergulhar na sala de cinema, naquela progressão...

Em relação à estreia agora pela Sessão Vitrine Petrobrás [projeto que lança produções brasileiras no circuito comercial de mais de vinte cidades do país], qual é a sua expectativa?

Eu não tenho essa experiência, então eu não fico criando expectativa, mas só o trailer tem meio milhão de visualizações. E quando você vai olhar a postagem [do Facebook], tem setecentos e tantos comentários e é uma batalha campal entre amantes de índios e agroboys insultando os índios. É um debate caloroso, mas indica que viralizou na internet. Se isso vai repercutir na sala nós vamos ver.

Vendo o filme, dá para perceber que ele faz várias críticas severas a diversas administrações governamentais, incluindo aí os mandatos presidenciais dos últimos 30 anos. Houve alguma resposta oficial de qualquer uma destas partes, sejam os partidos aos quais estes políticos integram ou a própria bancada ruralista?

De jeito nenhum. O gabinete da Gleisi Hoffmann me ligou, ainda em Brasília, dizendo que queria ver o filme - porque sabia que tinha sido citada – e eu respondi dizendo que o filme daqui a pouco estaria disponível na internet e tal. Foi o único sinal que eu recebi do lado de lá.

O filme combina constantemente um lado analítico, que é o processo histórico do índio no Brasil e a constante opressão de seus povos pelo Estado, com outro pessoal, que é o seu relato das suas próprias incursões por essas tribos. Como foi aliar estas duas partes no processo de montagem do longa?

Como a interpretação histórica é minha, creio que o filme continua no mesmo tom [risos]. A dimensão histórica foi crescendo no processo, a gente filmou primeiro e depois mergulhou na pesquisa histórica. Eu não pensei que esta parte não ganharia tamanha dimensão, mas é um caso raro de processo de expropriação documentada em documentos oficiais. Isso é prova jurídica, então daí a importância, o espaço que ganhou. Eu precisava mostrar dois mundos que são completamente antagônicos, então acredito que as filmagens da década de 80 proporcionam muito mais intimidade, mostrar com muito mais clareza o que é a religiosidade dos Guaranis. 

O resto é luta. A montagem se resolveu quando vi nos muitos casos de retomada que tinha em mãos aqueles que me permitiam puxar um momento, algum ciclo da História que tornasse a obra mais orgânica.

Então foi um filme que começou como uma obra completamente pessoal e foi evoluindo para este tratamento histórico? Essa percepção foi acontecendo aos poucos na produção?

Sim, na descoberta do material. E o filme é redigido na hora, foi sendo escrito e reescrito, teve muitas versões [risos].

Você já disse em entrevistas anteriores que estava com esse filme na cabeça há algum tempo, mas que você só decidiu fazer ele mesmo depois de receber a notícia da execução de um cacique Guarani em frente à sua própria aldeia e que depois sumiram com o seu corpo. Você conhecia este cacique?

Não, eu não conhecia ele pessoalmente. O chocante pra mim é desaparecer com o corpo, este é o castigo maior.

Percebo que este filme se tornou muito íntimo para você.

Sim, foi um surto de revolta. Eu estava escrevendo o roteiro de outro projeto na época inclusive, eu abandonei tudo para entrar com tudo nele.

Considerando que este é seu segundo longa-metragem [o primeiro foi Corumbiara, de 2009], você diria que até o momento este é o seu projeto mais pessoal?

Não, o Corumbiara e o meu próximo filme [Adeus, Capitão, que forma com Corumbiara e Martírio uma trilogia sobre a opressão do índio no Brasil] também são muito pessoais. Este último é sobre um povo que eu conheci em 1971, trabalhei quase duas décadas com eles e é também uma história em que a gente interveem, chama jurista, processa o Estado... enfim, ele tem toda uma ação e agora uma reflexão sobre este processo. A ideia da trilogia é isso: fazer uma reflexão sobre vários casos emblemáticos da questão indígena no Brasil.

Você termina o Martírio de uma forma muito pontual, com você permitindo aos índios que eles registrem com a câmera o terror que eles vivem. No Adeus, Capitão, que é o terceiro e último capítulo da sua trilogia, vai haver um prosseguimento desta linha de raciocínio?

Sim, sim, eu já dei oficina lá, já fiz filme com eles e certamente eles estarão integrados a este processo. O Adeus, Capitão é um filme mais complexo, ele não é um acaso dramático como é um genocídio, mas sim sobre como um processo de inserção capitalista desestrutura uma sociedade igualitária. É pegar o processo de um povo que quase se extinguiu em um momento de contato e ao longo das décadas conseguiu voltar à tona... enfim, é a saga de um povo. É um pouco singular no formato, na condução da narrativa. Depois eu planejo fazer um quarto filme que aí sim é mais uma linha memórias afetivas, sobre quando eu era adolescente e vivi entre os caiapós. Vai ser em outra linguagem, muito pautada em arquivos e fotos.

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