domingo, 25 de junho de 2017

Crítica: O Círculo

Ambiciosa, distopia tecnológica se atrapalha entre a trama simples e temáticas muito complexas.

Por Pedro Strazza.

Como outras produções dispostas a conceber distopias em cima do estado atual da relação da sociedade com as redes sociais, O Círculo já começa sobrecarregado pelo inevitável peso de inúmeras temáticas e enfoques que a internet e sua hiperconectividade global permitem ter. É uma dificuldade que não chega a ser nenhuma surpresa para o público - que por longas como Ela e Nerve vem se acostumando a este ramo do gênero nos últimos anos - mas à adaptação do livro homônimo de Dave Eggers ela parece surgir como um verdadeiro obstáculo a ser superado, ainda mais porque a obra busca conciliar uma grande quantidade de discussões dentro da estrutura típica de um filme adolescente.

O filme adolescente em questão está mais para um drama, mas há pintadas de horror e atalhos de roteiro suficientes para o aproximar do conto de fadas tradicional, onde a moral não tranquiliza o público e sim o traumatiza de alguma forma. Não por acaso, a trajetória percorrida pela protagonista Mae (Emma Watson) na história é digna de princesas como Cinderela e Bela Adormecida no sentido em que começam sem nada e terminam com tudo: inicialmente presa em um trabalho de escritório qualquer, a jovem consegue graças à amiga Annie (Karen Gillan) uma vaga no Círculo do título, uma corporação nos moldes do Google e do Facebook que prega o compartilhamento de experiências acima de tudo. Aos poucos priorizando a nova profissão em detrimento da família e dos amigos, Mae em pouco tempo ascende na empresa ao posto de garota-propaganda, disseminando as ideias propostas pelos membros fundadores Eamon (Tom Hanks) e Tom (Patton Oswalt).

Autor do roteiro ao lado de Eggers e conhecido por seus filmes de festival pautados no trabalho dos atores, o diretor James Ponsoldt ensaia com O Círculo uma abordagem do material diferente de sua rotina, estando focado na execução da alegoria a ser desenvolvida e desinteressado na performance seu elenco. É uma estratégia que faz algum sentido, dado que o longa é na essência um grande malabarismo de temáticas ao qual o cineasta busca centralizar sob a dinâmica da espetacularização, crescente na narrativa conforme os encontros promovidos por Eamon e Tom (bem no estilo dos "eventos especiais" de Steve Jobs na Apple) e o tema maior da vigilância tomam conta de todos os acontecimentos vistos em cena. Se Mae começa como mais uma espectadora, ela aos poucos se transforma na verdadeira dona do show, ocupando um espaço que ela demora a perceber como dotado de poder e ao qual a produção encarrega todo o processo de descoberta da trama. Isso ajuda o longa a encontrar um norte, muito porque o espetáculo flerta com o trauma pelo menos desde os tempos da televisão - basta pensar em trabalhos como O Show de Truman e principalmente O Rei da Comédia - algo que dá ao filme um sentido maior em sua lógica difícil de problematização.

Sob este viés, O Círculo não se distingue muito de Nerve quando alia o arco de emancipação de sua protagonista do meio que habita, digna das histórias voltadas aos adolescentes, com a problematização frequente da tecnologia e seus meios, uma mistura conhecida no universo de mensuração incerta dos jovens adultos. Mas se a produção de Henry Joost e Ariel Schulman reconhecia as próprias limitações desta proposta e abraçava o lado descompromissado da trama sem pudor, o filme de Ponsoldt tende a ignorar estas mesmas demarcações e forçar na estrutura muito simples um leque de questões demasiado complexas de se digerir em conjunto. O malabarismo então fica fadado à perda do controle: se o diretor mostra dificuldade em ligar temas dentro do espetáculo que realiza - um equívoco sozinho capaz de botar a obra inteira em risco - os mesmos acabam simplificados e restritos aos personagens rasos (Gillan faz a workaholic, Ellar Coltrane é o avesso à tecnologia, etc) que o mesmo Ponsoldt relega ao segundo plano.

O resultado é uma produção condenada à fragmentação, dilema que é aprofundado pela pasteurização latente. Típico caso de obra que prioriza suas temáticas em detrimento de qualquer desenvolvimento da trama, O Círculo acaba rendido pelas mudanças de comportamento bizarras do roteiro, que é incapaz de até mesmo se decidir a princípio entre fazer de Mae a protagonista ingênua ou consciente de suas ações - todos os momentos que ela tem com o personagem de John Boyega, por exemplo, são confusos por justamente exigirem este posicionamento da história. É ainda mais difícil de entender o cenário por se tratar de um filme de Ponsoldt, cujos trabalhos anteriores tinham sua maior qualidade justo na resolução de questões do tipo.

No resto, O Círculo é no mínimo embaraçoso nas alternâncias que faz entre temáticas difíceis e a história tão simples e ingênua como o cenário do campus onde grande parte dos acontecimentos se dá. O que alivia o longa de seus pecados, de certa forma, é que suas resoluções finais - mesmo que dominadas por uma inocência nada calculada - não deixam de imprimir ao espectador uma moral dúbia, cujo interesse em materializar o horror central da obra (ou seja, o medo de estar sempre conectado) se guia por uma abertura a interpretações do público ao invés de seguir somente pelo caminho do trauma puro e simples. E em tempos de Black Mirror e suas lições voltadas ao choque, isso já é dizer muito.

Nota: 4/10

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