sábado, 15 de julho de 2017

Crítica: Carros 3

Capítulo final da trilogia recicla valores de outras franquias para atualizar história.

Por Pedro Strazza.

Em termos de produção, Hollywood sobrevive como uma máquina em constante renovação. Seus estúdios estão sempre atrás de sucessos que alimentem suas receitas e se tornem em verdadeiras marcas, franquias capazes de multiplicarem os lucros para fora das telonas em produtos como brinquedos, materiais escolares e até lancheiras. Nesse sentido, tanto faz a qualidade da obra que irá às telas, o que interessa mesmo aos executivos é a sua rentabilidade e se ela possui o necessário para continuar rendendo dinheiro à empresa a qual pertence. Se isso é possível, ótimo; se não, está na hora de se reinventar ou partir para a próxima. Nenhuma produtora escapa desta lógica, algo comprovado inúmeras vezes no passado.

No caso da Pixar, empresa que se fez como um estúdio de animações de qualidade, tal noção de mercado está em Carros, que começou em 2006 como um longa alimentado pela paixão de John Lasseter por automóveis e a mítica Rota 66 para depois se tornar na franquia mais lucrativa da empresa fora das telas, gerando milhões em licenciamento e produtos. Entregue à insanidade e assumindo o viés de filme estritamente comercial no segundo capítulo, a série chega agora ao terceiro episódio sob uma aura de metalinguagem, percebida não apenas na figura do empresário que quer lucrar a todo custo em cima de seu corredor: como o protagonista Relâmpago McQueen (Owen Wilson), a franquia já passou pelo seu auge e vê agora a concorrência renovar suas marcas com produtos mais modernos e atraentes. O que para o protagonista é uma questão de manter-se na pista, para a série se trata de sobrevivência.

Para fazer isso acontecer, o diretor estreante Brian Fee e os roteiristas Kiel Murray, Bob Peterson e Mike Rich não hesitam em olhar para os lados em busca de outras franquias que possam ajudar a reorganizar a marca no mercado, uma metodologia de reciclagem levada quase como um mantra dentro da "máquina hollywoodiana" atual. A surpresa é que Carros 3 parece encontrar nos filmes de Rocky Balboa um modelo a ser seguido, passando a incorporar elementos de diversos episódios da série à sua estrutura e tomando as temáticas de hereditariedade e legado para si. A inspiração na saga do personagem vivido por Sylvester Stallone é tão clara que a produção não hesita em nomear um dos adversários de McQueen de Cal Weathers - uma alusão a Carl Weathers, o intérprete do Apollo Creed que anos depois serviria à Rocky de chave em seu reinício com Creed.

A mudança de foco oriunda desse processo é bastante abrupta. Se nos outros dois capítulos o disputado circuito de corridas era um pano de fundo para os acontecimentos da trama, Carros 3 torna o esporte em sua questão central ao inserir em McQueen um dilema de temporalidade, conforme ele percebe que seu tempo na pista se aproxima a passos largos do passado. A trama gira em torno de sua reticência em constatar este fato, com ele em busca de vencer a primeira corrida da temporada para provar a seu novo patrocinador - o empresário Sterling (Nathan Fillion) - de que é capaz de correr com a nova e mais veloz geração, que inclui o vilanesco Jackson Storm (Armie Hammer). Para enfrentar a alta tecnologia do treinamento de seus adversários, McQueen terá de recorrer ao passado, enquanto atura as investidas de sua nova treinadora, Cruz Ramirez (Cristela Alonzo), de aceitar o futuro.

A sinopse acima já induz a essa conclusão, mas ao longo de sua história o filme dá evidências do quão frágil é sua estrutura. Comportando-se como um verdadeiro medley de todos os Rocky, a narrativa do longa toma emprestado tantos elementos e referências distintas da série de boxe para a pista - o duelo McQueen/Storm sem surpresas evoca Rocky IV, a própria personalidade do vilão emula o Clubber Lang do terceiro capítulo, a relação do protagonista com Cruz alude à Creed, o Doc Hudson do saudoso Paul Newman vira quase o Mickey de Burgess Meredith na extensa homenagem que recebe - que por consequência acaba por trazer sem perceber para o roteiro todas as variantes temáticas implícitas. E ao mostrar dificuldade em organizar tudo isso sob um mesmo eixo, a produção dá a sensação de estar mirando muitos objetivos para conseguir apenas acertar algum.

É um caso de desorganização que logo se converte em esquizofrenia pura, ainda mais porque o protagonismo de McQueen passa a competir com o arco de redenção de Cruz sem necessidade, conforme Carros 3 busca tirar da dinâmica dos dois a ideia de que a franquia mora em um ciclo eterno de aprendizado, uma noção por sua vez emprestada de Toy Story, outra série bem sucedida da Pixar. Mas se na história de Woody e Buzz este sentimento era resultado de um uso bem aplicado de nostalgia (que pouco depois se converteria em palavra de ordem nas grandes produções de Hollywood), o caminho usado neste derradeiro capítulo da trilogia Carros para obter este mesmo fim converte a franquia àquele que talvez seja um dos maiores pesadelos da máquina hollywoodiana: a desfiguração.

Nota: 4/10

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