sábado, 17 de fevereiro de 2018

Crítica: Lady Bird - É Hora de Voar

Grandes performances de Saoirse Ronan e Laurie Metcalf ancoram filme de Greta Gerwig sobre o abandono do ninho.

Por Pedro Strazza.

É uma prática comum em filmes voltados a adolescentes que o universo colocado à disposição dos personagens seja retratado quase como um fantasia de consumo desta idade ou - no pólo exatamente oposto - com todo o teor cru da "realidade". Pelo menos no imaginário estadunidense, onde foi popularizado nos anos 80 e é mantido até hoje como um dos subgêneros dominantes da produção nacional, os chamados coming of age gostam de se manter atrelados a uma destas esferas pre-concebidas, reduzindo diferentes ambientações ao clichê dos bairros suburbanos ou daqueles marginalizados. A estas obras interessa muito mais o drama em sua raiz, traduzido no conflito entre seus personagens que no geral, apesar dos diferentes gêneros e abordagens temáticas, resulta nos mesmos arcos de amadurecimento ou de emancipação do conforto do lar.

Dentro desta equação, Lady Bird - É Hora de Voar à princípio não parece ter muito à oferecer além da conversão destes arcos a uma ótica feminina, acompanhando a protagonista Lady Bird (Saoirse Ronan) enquanto ela realiza as tradicionais descobertas do sexo e de outros prazeres da juventude no começo da década de 2000. Esta aparente premissa superficial, porém, é somente a base para o longa da diretora e roteirista Greta Gerwig, cuja condução está menos atenta aos cacoetes tradicionais deste tipo de história que nos elementos que circundam a trama e se inscrevem no pacato cenário de Sacramento, palco do filme e também a cidade natal da cineasta.

Esta conexão de Gerwig com a região prevalece na produção como uma estrela-norte, mas não dentro da lógica nostálgica tradicional. De caráter semibiográfico, o longa assume do início uma noção de dualidade para sua estrutura, permeando relações e espaços sobre a ambiguidade de atração e repulsa que culmina na relação contraditória sentida pela protagonista com sua origem, que busca a todo custo estudar em Nova York mas também mostra aspirar certos desejos regionais, desde suas grandes mansões até amizades e amores com a elite da cidade. O clima quente da região ajuda a dar este ar receptivo comum a todos os espaços, mas é o olhar de Lady Bird que determina se este "calor" de fato está materializado - e um bom exemplo disso talvez esteja no contraste dos retratos do quarto do namorado interpretado por Timothée Chalamet antes e depois da cena da primeira transa.

Gerwig trabalha estas aflições com o contorno adocicado do típico produto adolescente contemporâneo, mas mantém alternado na narrativa as projeções do olhar de Lady Bird com a realidade dura do cenário. Neste sentido, é interessante observar como esta dualidade reverbera como contestação às fantasias da protagonista, seja nas limitações financeiras que insistem em prendê-la ao chão ou nas dores alheias que a atingem em diferentes níveis - se o trauma do padre responsável pelo grupo do teatro (Stephen Henderson) passa quase desapercebido por ela, a depressão do pai (Tracy Letts) há de revelar parte de seu egoísmo com a família. Os dois namorados presentes na trama, enquanto isso, são responsáveis por este de materialização e destruição dos desejos da personagem: o de Lucas Hedges oferece o conforto da vida rica na cidade, o de Chalamet dá a opção de viver "à margem" ridicularizando revoltado toda as concepções de ideal social propagadas pelos pais.

No centro de todos estes cenários e relações, quem rege tamanha ambiguidade é a relação de mãe e filha, o lógico maestro maior da obra. Encenado por Gerwig com naturalidade e foco nas reações das duas atrizes, os sucessivos conflitos de Lady Bird com Marion (Laurie Metcalf) pautam essa dicotomia nostálgica ao mesmo tempo que operam dentro dela - outro sinal desta dualidade quase simbiótica do filme -, pontuando momentos emocionais vividos pela protagonista (a formatura do colégio, a perda da virgindade) e propondo a ela novas situações dramáticas (a cisão no fim). A medida é feita para dar ao longa um eixo maior que o permita se desviar constantemente nas diferentes subtramas, mas acaba responsável aqui por canalizar todo o sentimento de contradição do qual a produção busca se apoiar.

É claro que existe uma natureza conservadora implícita em toda esta proposta emocional (no fundo a grande mensagem por trás do longa exprime um certo saudosismo eterno pelo ninho), mas é por desejar a duplicidade irracional deste sentimento que Gerwig torna seu filme tão especial e permanente em seus efeitos. Não à toa, a relação central de Lady Bird começa e termina em olhares subjetivos e incapazes de serem resolvidos em afirmações frontais, seja o da mãe que precisa abrir mão da filha ou da filha que precisa abrir mão da mãe e do lar - e há de se valorizar a potência dos trabalhos de Ronan e Metcalf nesta hora, pois seus olhares em suas respectivas últimas cenas no filme exprimem toda a dor emocional envolvida nestes processos tão diferentes e ao mesmo tempo tão similares.

Nota: 8/10

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