domingo, 31 de julho de 2016

Crítica: O Bom Gigante Amigo

Em  chave saudosista, Spielberg volta ao passado em busca de simplicidade.

Por Pedro Strazza.

Ainda que seja responsável por formar cinéfilos e fazer pessoas se apaixonarem pelo cinema, é curioso admitir que Steven Spielberg não é um diretor de filmes para crianças, mas sim de adolescentes. Conhecido por obras responsáveis por marcar uma geração de jovens a ponto de se tornar em um dos pilares da nostalgia pelos anos 80, o cineasta a bem da verdade tem somente três experiências com a menor faixa etária, e duas destas nem parecem ser feitas para tal público: Hook - A Volta do Capitão Gancho é um paradoxal conto infantil voltado para adultos, e A.I. - Inteligência Artificial era um projeto de Stanley Kubrick que foi prosseguido pelo diretor.

Isso posto, é válido que apenas E.T. - O Extraterrestre e, agora, O Bom Gigante Amigo se comportem como únicos reais exemplares de filme infantil dentro da obra do cineasta. Mas enquanto o primeiro, até hoje presente no imaginário infantil, ainda é regido pelos temas e o estilo característico de Spielberg (na realidade ajudou a fundamentar seu cinema hoje tanto reconhecido), a adaptação do livro homônimo de Roal Dahl soa mais como um produto atípico, que se distancia um pouco do traço do diretor para atingir metas diferentes. Não que a história da amizade da pequena orfã Sophie (Ruby Barnhill) com o gigante do título (Mark Rylance) seja uma quebra definitiva dos moldes ditos "spielberguianos" - a ruína familiar ainda é o ponto de partida, por exemplo -, mas há mudanças perceptíveis nessas mecânicas a ponto de causar certo estranhamento.

Essa sensação vem muito da proposta do filme, cujo anacronismo não poderia ser mais evidente. Ao contrário de outros trabalhos, sempre dispostos a tirar de tramas variadas temáticas universais e atemporais - mesmo sua produção recente, que tem uma predisposição evidente de retornar ao passado, mostra alguma preocupação de conectar-se com o presente, seja pela forma (As Aventuras de Tintim) ou conteúdo (Ponte dos Espiões) -, Spielberg aqui se propõe ao resgate da inocência nas tramas de fantasia, de um tempo mais simples no qual mocinhos e vilões eram bem delimitados, configurando em um saudosismo dos mais singelos e elementais. A trama descomplicada e em alguns momentos até episódica do longa parece pregar o ingênuo como motor e estrela-guia, única fonte necessária ao funcionamento e direção dos eventos mostrados mesmo nas situações de humor, infantilóide ao extremo nas piadas com pum e etiqueta.

O que gera o choque com o presente atual, contudo, é o esforço feito pela produção para retomar o uso do fantástico como transformador da realidade à sua volta sem se deixar afetar-se pela mesma, funcionando como uma espécie de refúgio temporário aos problemas cotidianos. O arco de Sophie, afinal, começa com ela sozinha pernambulando pelos corredores do orfanato onde vive, próxima da dura realidade inglesa dos anos 80, para chegar a um lugar dentro do palácio da idílica família real britânica (papéis de Penelope Wilton e Rebecca Hall), um ambiente retratado como um dos ingênuos sonhos capturados e distribuídos por seu amigo, e tem como meio canalizador dessa mudança para melhor justamente a terra dos gigantes ao qual é transportada no início. A cena que melhor consagra isso no longa é a do mergulho no lago, no qual ela e o Bom Gigante Amigo fazem o literal salto para o onírico atrás da matéria dos sonhos.

As intenções de Spielberg com a adaptação são puras, mas acabam não se adequando como estrutura por causa do próprio material base do qual parte. Como o resto da obra de Dahl (e as outras transposições de seus livros para as telonas atestam isso), O Bom Gigante Amigo é carregado de subtextos políticos e aterradores, e por mais que sejam esvaziados pelo roteiro de Melissa Mathison eles não deixam de ser reproduzidos no filme. É o caso do viés militarista e nacionalista da trama à partir da introdução do governo inglês - e a noção do "o mais forte prevalece" só acentua o problema - ou mesmo da moral punitiva, típica na literatura do autor e que se anuncia na resolução final tomada em relação ao grupo de gigantes malvados, verdadeiras crianças mal criadas da história.

O resultado obtido com esse conflito é uma grande salada de sensações contraditórias, com o espectador preso entre o sentimentalismo simples desenvolvido pela produção e as mensagens antiquadas do texto de Dahl. Mas mesmo que não consiga funcionar a pleno vapor na narrativa, a proposta pela descomplicação de Spielberg, uma variante interessante de seu cinema e muito bem explorada nos seus travellings, é capaz de trazer de volta um encanto singelo com o mágico e o passado sem se configurar na tão explorada nostalgia vista na contemporaneidade, um feito fascinante em um de seus filmes mais inconstantes.

Nota: 5/10

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