domingo, 23 de abril de 2017

Crítica: Joaquim

Cinebiografia se rende ao misticismo da figura de Tiradentes em retrato humano.

Por Pedro Strazza.

"Ele não é daqui, ele não entende" diz Tiradentes (Júlio Machado) ao colega de expedição depois deste o informar que o português que os acompanhava na viagem pelo interior do país em busca de ouro foi para o Rio de Janeiro, querendo retornar para sua terra natal. É um momento não muito surpreendente na narrativa de Joaquim, dada a situação difícil vivida por todos os três personagens, mas que serve para colocar em palavras aquilo presente até então na dedicação de cada um frente às condições adversas para cumprir com a missão: o que ao estrangeiro era encarado mais como uma tarefa, aos olhos do protagonista é tratado como obsessão.

Esta diferença social nunca chega a se traduzir em enfrentamento direto na trama, mas tal percepção mais "sedenta" pelo ouro serve de centro nervoso a toda a proposta da cinebiografia do mártir da Inconfidência Mineira. Situado no espaço de tempo anterior à filiação do protagonista ao movimento separatista que depois o conduziria a seu trágico destino, o longa de Marcelo Gomes encontra na exploração aurífera da época as bases para estruturar um arco de provação a seu personagem, que passa aqui por um sofrimento similar ao vivido por heróis religiosos enquanto persiste na tarefa de encontrar tal minério precioso. A imagem do suplício de Jesus no deserto não demora a vir à mente, seja pelo cabelo e barba longos que Joaquim carrega a princípio ou o cenário árido, e é exatamente esta comparação que Gomes procura atribuir a sua figura histórica.

Tal identificação, porém, está longe do intuito propriamente divino de glorificar Tiradentes e seu sacrifício, sendo usada mesmo sob o viés de uma construção simbólica que não destitua do protagonista sua humanidade. Se o filme começa com a visão impactante da cabeça de seu herói empalada de frente a uma capela simples, é porque Gomes busca fazer da obra um retrato cru de um país ainda em formação, materializando esse processo na figura de um Joaquim que ainda não se fez como o Tiradentes que não conhecemos. Joaquim se torna então na representação do brasileiro, consagrado pelo próprio quando ele diz ser os três tipos de pessoas do país: bandido, corrupto e vadio.

O aspecto religioso, neste sentido, surge para facilitar esta construção em termos imagéticos, principalmente para reforçar a ideia do ouro como item sagrado desta cultura e forma de canal para a elevação do indivíduo ao status superior de uma aparente bestialização. Na maior parte do filme Machado trabalha Joaquim com uma postura mais bruta e quase animalesca, mas sua atitude se converte à da figura histórica que irá desempenhar depois ao encontrar o veio de ouro ao qual tão obsessivamente procurou. Esta cena, inclusive, é tratada por Gomes com todo o ar religioso que lhe é possível, com direito a enquadramento da pedra como dotada de luz própria (divina, de certa forma) e o protagonista se despindo de suas dores em um banho no rio e depois em uma cachoeira.

É um viés de análise social forte, mas que se sabota ao longo da narrativa pelo grau de centralização da trama em cima do protagonista que Gomes impõe. Pelo tipo de ambição Joaquim exige uma presença constante de contexto histórico para funcionar, porém ele opta por concentrar todas as atenções no seu principal personagem e submeter tudo a ele. É um movimento esperado (até porque se trata de uma cinebiografia, afinal) que o longa força tanto a ponto de tornar o resto uma mera banalidade quando não relacionado em caráter direto a Joaquim: figuras oprimidas como o índio e o negro, por exemplo, acabam virando elementos periféricos quando buscam funcionar sozinhos em seus manifestos, o que por sua vez faz cenas bonitas como o do canto unido de dois escravos de origens diferentes parecerem pontualidades isoladas do resto.

Essa falta de contexto, responsável por tornar Joaquim um exercício de construção de identidade nacional meio falho, meio vazio, fica ainda mais evidente quando o filme no fim precisa empregar uma certa carga de cinismo a todas as conquistas do protagonista. Nos encontros de Tiradentes com os líderes da Inconfidência, é bastante claro que Gomes compreende a existência de algum grau de manipulação em cima do protagonista pelas risadas dos revolucionários perante as propostas radicais do futuro mártir e o tom melancólico que no terceiro ato aos poucos substitui a visceralidade maior da narrativa, mas sua tendência não-assumida de querer entender o misticismo em volta de Tiradentes o impede de levar isso a algo mais concreto. Ao optar por fazer um estudo tão profundo de seu protagonista, Gomes parece se render a aura que este carrega no imaginário histórico brasileiro.

Nota: 5/10

0 comentários :

Postar um comentário